Corregedorias são departamentos voltados a orientar e fiscalizar o comportamento de policiais. Contudo, como muitos órgãos públicos, sofrem o dilema de quem “guarda os guardiões” – um típico problema organizacional que ocorre quando os agentes monitores são provenientes do mesmo grupo de agentes a serem monitorados (por exemplo, policiais monitorando policiais, juízes monitorando juízes, etc). Nesse cenário, naturalmente, pairam dúvidas acerca da imparcialidade das investigações, uma vez que o corporativismo pode falar mais alto fazendo com que os monitores favoreçam seus colegas envolvidos em determinados desvios. Tal comportamento pode explicar porque certas reclamações contra policiais se sustentam e outras não – e se essas reclamações acarretam consequências severas aos investigados. No contexto de corregedorias, julgamento e punição tendem a estar nas mãos de policiais que foram ou voltarão a exercer deveres comuns. Dessa forma, policiais podem usar canais de influência para obstruir provas e afetar julgamentos. Da mesma forma, comissões de investigação podem deixar de punir colegas no topo da carreira ou se fazerem de cegos diante de certos desvios considerados “normais” entre policiais, como agressão de suspeitos.
Sandro Cabral e Sérgio G. Lazzarini se valeram de informações detalhadas de processos administrativos contra policiais brasileiros suspeitos de desvios de conduta em estudo que analisou 639 processos disciplinares, realizados entre 1999 e 2006. As investigações tiveram início na Polícia Civil de um determinado estado brasileiro e foram encaminhadas para um órgão de Corregedoria Geral desse mesmo estado, responsável por supervisionar todas divisões policiais estaduais.
De acordo com a lei do estado avaliado, as investigações devem ser concluídas em até quatro meses; no entanto, a média de duração é de 18 meses e, em algumas instâncias observadas, ultrapassaram a marca de oito anos.
A análise foi feita em dois estágios: o primeiro examinou fatores que afetam a conclusão das investigações e o segundo, o resultado final. A velocidade da conclusão também foi levada em conta. Enquanto certos procedimentos adotados pela corregedoria aceleram as investigações, características como o status e tempo de permanência no emprego do oficial, assim como o tipo de acusação, afetam de maneira significativa o veredito final, sugerindo parcialidade relacionada ao tipo de desvio e ao perfil do policial investigado.
Os dados também revelam que cobertura intensa da imprensa cria maiores chances de um policial ser condenado – uma explicação é que apenas casos mais severos são cobertos pela mídia. Outra é a pressão externa. Demanda por maior responsabilização das instâncias do estado manifestam a preocupação crescente da sociedade com a performance e a execução correta do serviço público.
Comissões formadas com policiais especializados, fixos, investigam e julgam casos com maior efetividade do que comissões formadas por membros temporários. Não foram encontradas provas, porém, de que esses membros fixos são suscetíveis à influência de colegas com que tenham trabalhado no passado. Surpreendentemente, a posição do investigado na hierarquia policial e seu tempo de trabalho não afetam a velocidade da conclusão. No entanto, a análise revelou que policiais mais experientes e de alto escalão sofrem punições menos severas que colegas mais jovens. Ademais, foram registrados efeitos distintos para tipos diferentes de acusações: policiais acusados de usar violência contra suspeitos recebem punições mais leves do que aqueles que praticam extorsão. Policiais entrevistados revelaram que algum grau de violência é muitas vezes visto como aceitável para se conduzir investigações criminosas. Por outro lado, o crime de extorsão parece não ser tolerado sendo uma prática desprezada pelos órgãos de supervisão e punido com relativa severidade. De fato, a maioria dos processos que resultou em demissão foi relacionada à extorsão (46,5%). O resultado sugere que normas informais de conduta dentro da polícia afetam a maneira com que policiais serão punidos.
A criação de comissões de investigação permanentes parece ter efeitos benéficos em acelerar a conclusão de investigações – algo crítico, dado que o tempo de conclusão dos processos examinado pelo estudo é muito mais lento do que a exigência da lei. Embora o cargo do policial e o tipo de acusação influenciem os resultados, há evidência de que a composição de comissões de investigação podem auxiliar positivamente a investigação e julgamento. Em adição, um maior número de policiais implicados num mesmo crime reduz a probabilidade de punição para cada indivíduo implicado, possivelmente por conta das dificuldades de se saber ao certo quem são os verdadeiros culpados e o grau de responsabilidade de cada policial processado.
Por fim, divisões de polícia e outros órgãos públicos podem e devem gerar mecanismos internos mais adequados e abrir suas informações para o escrutínio público de modo a revelar os fatores que afetam padrões de julgamento dos pares envolvidos em malfeitos, contribuindo assim para melhorar os níveis de accountability no país.
O artigo foi publicado no Journal of Public Administration Research and Theory. Acesse aqui a versão em working paper.