CONHECIMENTO| CONTEÚDO SOBRE A PANDEMIA DE COVID-19 |ACESSE A PÁGINA ESPECIAL
Ainda na fase inicial da pandemia no Brasil, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) recomendou a tribunais que adotassem medidas a fim de evitar a propagação do vírus no sistema prisional. No estado de São Paulo, porém, poucos HCs (habeas corpus) que mencionaram a Covid-19 prosperaram.
Natália Pires de Vasconcelos, professora do Insper, e Maíra Rocha Machado e Daniel Wang, docentes da FGV Direito SP, analisaram 6.781 decisões referentes a HCs publicadas no Diário Oficial do Tribunal de Justiça paulista de 18 de março e 4 de maio. Ao todo, 88% deles foram negados.
O habeas corpus consiste em um tipo de ação judicial cujo principal objetivo é proteger o direito de liberdade de locomoção de um indivíduo, ou seja, se alguém está preso de forma ilegal ou sente que seu direito de ir e vir está sob ameaça, pode ajuizá-lo.
Nos casos tratados na pesquisa, o procedimento foi utilizado para solicitar a mudança de regime de cumprimento de pena –o encaminhamento para a prisão domiciliar ou para os regimes semiaberto ou aberto– e sobretudo a revogação de prisão provisória –quando ainda não houve julgamento definitivo do caso.
Tanto a possibilidade de alteração de regime quanto a reavaliação de prisões provisórias, que representam cerca de um quinto do total no estado, de acordo com os dados oficiais, aparecem na relação de recomendações do CNJ.
O conselho indicou a priorização dos casos de quem pertence a grupos de risco do novo coronavírus, como idosos, pessoas com doenças respiratórias ou infectocontagiosas –a exemplo de HIV, tuberculose ou hepatite–, mães de crianças de até 12 anos ou gestantes. A recomendação também se aplicaria para pessoas presas em unidades superlotadas ou sem equipe de saúde.
Para examinar as decisões do TJ-SP, Natália, Maíra e Daniel recorreram a técnicas de análise de texto, aplicadas por meio de programação em Phython, para determinar se houve provimento ou não e se o HC era individual ou coletivo. Esses métodos de processamento de linguagem natural, a exemplo de buscas por expressões regulares, permitem trabalhar com um grande volume de textos e explorar o seu conteúdo.
De todas as decisões coletadas, 371 foram lidas integralmente para uma análise qualitativa de seu conteúdo. Quase um quarto dessa amostra, 95 casos, referia-se a pessoas em grupos de risco para Covid-19. Em somente cinco, os pedidos foram deferidos.
Em um dos processos indeferidos, no qual era analisado o pedido de uma pessoa que não estava no grupo de risco, porém não havia cometido crime violento ou de grave ameaça, um juíz argumentou: “O vírus liberto é perigoso, e como não dá para prendê-lo, prendemo-nos nós. O traficante livre também é perigoso, mas dele podemos nos ver livres desde que o prendamos ou o mantenhamos preso, ainda que por um período que o faça refletir sobre a gravidade do que fizera”.
Na avaliação da equipe Insper/FGV, os resultados obtidos até aqui são expressivos e indicam que o Tribunal de Justiça paulista não está seguindo a orientação do CNJ para o enfrentamento da Covid-19.
O quadro assemelha-se ao verificado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo. O órgão apurou que foram expedidos alvarás de soltura em 3% dos processos de pessoas cuja situação se enquadra em pontos presentes nas diretrizes do CNJ.
Não seguir as recomendações, no entanto, pode elevar a exposição ao Sars-Cov-2 em um ambiente de risco. No sistema prisional, as chances de contrair doenças infecciosas podem ser até 60 vezes maiores do que fora dele. Além disso, em São Paulo, o sistema está superlotado.
Até 29 de junho, segundo o Depen (Departamento Penitenciário Nacional), foram confirmados 4.530 diagnósticos de Covid-19 nas unidades prisionais do país, com 59 mortes. A subnotificação e outras falhas nos dados oficiais estão sendo sistematicamente reveladas pelo projeto Infovírus Prisões.
Nas próximas etapas do estudo, a equipe de pesquisa vai aprofundar a análise dos discursos de juízes e juízas em suas decisões. Pretende, ainda, verificar decisões tomadas depois de maio, bem como replicar o modelo de análise em outros tribunais.
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