Autor:
Paulo Furquim de Azevedo
O uso de ações judiciais para conseguir o acesso a medicamentos e procedimentos que o SUS ou planos de saúde não oferecem ocorre em uma tal escala, que vem modificando a própria política de saúde pública e suplementar, no que se convencionou chamar por judicialização da saúde. Grande parte desses pedidos têm sido embasados pelo artigo 196 da Constituição Federal de 1988, que diz que “a saúde é um direito de todos e um dever do Estado”. O tema foi discutido em um evento organizado pelo Insper no dia 26 de maio.
“A primeira ideia de judicialização da saúde tem uma conotação negativa. Mas quando analisamos os motivos para se recorrer ao Judiciário, vemos que o assunto é muito mais complexo”, explica Paulo Furquim de Azevedo, professor e coordenador do Centro de Estudos em Negócios do Insper.
Furquim destaca que a prática pode ser eficaz para contribuir com o cumprimento da política de saúde do SUS ou do contrato de um plano de saúde. Por outro lado, ela também pode ser usada de forma a obrigar a feitura de procedimentos que extrapolam planos particulares ou não fazem parte do oferecido pelo Sistema Único de Saúde, distorcendo a política pública e onerando os prestadores de serviço.
Um caso emblemático desse segundo tipo de demanda é o da popularmente conhecida Pílula do Câncer (fosfoetanolamina sintética). Mesmo sem qualquer constatação da confiabilidade dos efeitos colaterais, a USP teve 13 mil liminares – entre junho de 2015 e fevereiro de 2016 – para a liberação do medicamento.
Para se ter uma ideia da proporção da judicialização da saúde no Brasil, Furquim destaca que, de acordo com a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), os gastos do Ministério da Saúde com essas determinações judiciais foram de R$ 4,5 bilhões nos últimos sete anos.
Segundo Marcos Ferraz, professor da Unifesp Universidade Federal de São Paulo), o grande problema da judicialização da saúde é que, ao defender o direito individual, pode-se acabar por comprometer o coletivo. “É um problema que deveria estar preocupando todo mundo. Estamos misturando saúde com o direito do cidadão. É imprescindível refletir que, ao não fazer algo por poucos, podemos tornar possível o bem para a maioria”, afirma.
Desejo x necessidade
Diretor executivo da FenaSaúde (Federação Nacional de Saúde Suplementar), José Cechin diz que a boa judicialização acontece em uma zona cinzenta na qual não está claro a quem cabe o direito. De um lado, uma demanda que não foi atendida. Do outro, uma entidade que feriu direitos legítimos. “Essa é a área típica de atuação do juiz, que se vale dos recursos possíveis para poder tomar a sua decisão”, explica.
Vale frisar também que toda decisão judicial desse tipo, seja ela boa ou má, tem o respaldo de um médico assistente. É por isso que os núcleos de apoio técnico, como o Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NAT-Jus), se tornam tão importantes. Serão eles que, de forma isenta, darão um parecer sobre a real necessidade ou alternativas às ações judiciais.
Por mais que os direitos do cidadão sejam válidos, a possibilidade de garanti-los por meio de ações judiciais tem alguns efeitos perversos. Cechin explica que elas criam uma expectativa de conseguir o que desejam pela via judicial, o que faz com que as pessoas fiquem menos propensas a pagar por planos de saúde melhores e mais abrangentes, pois sentem que devem ser sempre atendidas. Esse comportamento tem dado estímulo ao crescimento da judicialização, além de elitizar o acesso à saúde, impor ônus à coletividade, entre outros problemas.
Discutir para caminhar
“A judicialização não é uma questão nova. Pelo contrário, está ficando velha e não tem sido adequadamente discutida pela sociedade brasileira”, diz Gonzalo Vechina, professor da USP e ex-presidente da Anvisa. Isso porque, enquanto a boa judicialização cria uma ponte para a equidade, a má ignora o próprio artigo 196 da Constituição, que prioriza as políticas públicas.
Dentro dessa realidade, segundo o professor Vechina, ainda é preciso buscar formas de equilibrar o ativismo jurídico. E isso só pode ser feito por meio de um Judiciário que olha para as políticas públicas e cobra do Executivo as suas execuções. Além disso, ele destaca que é preciso ter práticas que possibilite respostas melhores sobre o assunto, pois a questão do acesso é complicada e deve ser discutida de forma coletiva. “É preciso esclarecer à população que há coisas que não poderão ser oferecidas e outras que terão que ser concedidas.”
No Brasil, um exemplo que foi bem-sucedido é o da AIDS. O professor da USP explica que quase não existe judicialização na área de retrovirais, pois o Programa Nacional da AIDS criou consensos técnicos sobre o que deveria ser usado no tratamento da doença e levou essas informações à sociedade. Dessa forma, hoje, se tem um sistema eficaz que foi construído com a participação ativa dos cidadãos.
Vechina lembra, porém, que com o pequeno PIB per capita do Brasil, não será possível fazer milagres imediatos. Isso significa que é preciso trabalhar forte para haver cada vez mais concertação, e esse é o grande desafio que a sociedade brasileira precisa enfrentar agora.
Veja como foi o evento: