Entre 1790 e 1822, grandes comerciantes no Brasil negociavam itens básicos, como charque e farinha de mandioca, transportados de portos distantes na costa, como o Rio Grande do Sul e o Espírito Santo, para o comércio interno em grandes centros, em particular o Rio de Janeiro.
Esse movimento, constatou a historiadora norte-americana Larissa Brown, associou-se à redistribuição dos recursos produtivos, sobretudo a terra, impulsionada pela especialização de algumas regiões brasileiras na produção de mercadorias, como o açúcar e o algodão, destinadas ao mercado externo.
Brown doutorou-se em 1986, na Universidade da Virgínia (EUA), com o trabalho “Internal Commerce in a Colonial Economy: Rio de Janeiro and Its Hinterland, 1790 – 1822“, que trata do regime de trocas domésticas em torno da então capital da Colônia durante os 32 anos que antecederam a Independência.
Em meio à alta contínua do preço do açúcar, áreas mais propícias ao plantio de cana passaram a privilegiar esse cultivo, deslocando a produção de alimentos para o consumo local. Com isso, outras regiões distantes dos grandes centros exportadores foram se dedicando ao abastecimento do mercado interno.
Embora processos semelhantes de especialização produtiva tenham acontecido em outros centros, como no caso do algodão no Nordeste, a análise de Larissa Brown se concentra no Rio de Janeiro e na grande área de mercado interno do centro-sul do país, que tinha no porto do Rio seu centro comercial e financeiro.
“O renascimento da agricultura de exportação nas costas brasileiras ao final do século XVIII teve como consequências simultâneas a intensificação do papel do Rio de Janeiro como entreposto comercial, o estímulo à especialização [da produção] e o aumento do comércio no mercado interno”, escreve.
No período estudado por Brown, a população do Rio de Janeiro dobrou de tamanho, chegando a quase 80 mil pessoas, em 1821.

Além da capital e de suas redondezas, outras regiões do centro-sul do país cresciam como potenciais centros de demanda para a produção doméstica mais distante de alimentos. Campos dos Goytacazes (a menos de 300 km do Rio), deixou de ser um polo de abastecimento de carne para a capital e dedicou-se à cana. Ali o número de engenhos passou de menos de 60, em 1770, para 288, em 1797. De área exportadora de comida, tornou-se importadora.
Na periferia da capital e na baía de Guanabara, mais terras foram mobilizadas para a cana, o que empurrou a criação de gado destinada à produção de carne fresca para o sul de Minas Gerais.
Carne mais barata, salgada para poder durar mais tempo e ser transportada por grandes distâncias, o charque passou a ser produzido em escala industrial no sul do país, de onde era transportado em grandes quantidades para toda a costa, principalmente para o Rio.
Grandes comerciantes da praça carioca, que ocupavam o topo da hierarquia mercantil e participavam por exemplo do tráfico atlântico de escravos, passaram a se dedicar também ao mercado interno, comprando charque no sul e farinha de mandioca em Santa Catarina. Em poucos anos, a região que hoje abrange Florianópolis passou a produzir grande quantidade de farinha sobretudo para o mercado brasileiro.

“Por volta de 1800, os cariocas já haviam se acostumado a comer pão feito com trigo gaúcho; carne, porco e toucinho vindos de Minas e São Paulo; peixe seco de Laguna (SC); charque do Rio Grande do Sul”, escreve Brown. “Quinze anos mais tarde eles não se espantariam ao serem informados de que sua farinha de mandioca às vezes vinha de Santa Catarina ou de Caravelas (BA), que seus cavalos e mulas comiam milho de Cabo Frio e que muitas das casas recém-construídas na Cidade Nova haviam sido erguidas com madeira de Macaé, Rio de São João ou de Paranaguá.”
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